Os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração. As relações humanas estão, por uma espécie de padronização dos comportamentos, cada vez mais “ossificadas”. A relação da subjetividade com sua exterioridade se encontra comprometida por uma espécie de infantilização regressiva.
O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento demográfico.
As formações políticas e instâncias executivas parecem totalmente incapazes de apreender essa problemática no conjunto de suas implicações. Apesar de estarem começando a tomar uma consciência parcial dos perigos mundiais mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades, elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e, ainda assim, unicamente numa perspectiva tecnocrática, ao passo que só uma articulação ético-política – a que chamo ecosofia – entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) é que poderia esclarecer convenientemente tais questões.
Em função do contínuo desenvolvimento do trabalho maquínico redobrado pela revolução informática as forças produtivas vão tornar disponível uma quantidade cada vez maior do tempo de atividade humana potencial. Mas com que finalidade? A do desemprego, da marginalidade opressiva, da solidão, da ociosidade, da angústia, da neurose, ou a da cultua, da criação, da pesquisa, da re-invenção do meio ambiente, do enriquecimento dos modos de vida e de sensibilidade?
Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá concernir, portanto, não só às relações de força visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo, tendo em vista que atualmente os modos dominantes de valorização das atividades humanas são:
1.Do império de um mercado mundial que lamina os sistemas particulares de valor, que coloca num mesmo plano de equivalência os bens materiais, os bens culturais, as áreas naturais, etc.;
2. Que coloca o conjunto das relações sociais e das relações internacionais sob a direção das máquinas policiais e militares.
Em se tratando de subjetividade humana temos em questão um sistema de “unidimensionalização” no ocidente assim como o antigo igualitarismo de fachada do mundo comunista que vem dar lugar, assim ao serialismo de mídia (mesmo ideal de status, mesmas modas, mesmo rock etc.).
A instauração, em longo prazo, de imensas zonas de miséria, fome e morte parece daqui a diante fazer parte integrante do monstruoso sistema de “estimulação do Capitalismo Mundial Integrado”.
Assim, para onde quer que nos voltemos, reencontramos esse paradoxo lancinante: de um lado, o desenvolvimento contínuo de novos meios técnico-científicos potencialmente capazes de resolver as problemáticas ecológicas dominantes e determinar o reequilíbrio das atividades socialmente úteis sobre a superfície do planeta e, de outro lado, a incapacidade das forças sociais organizadas e das formações subjetivas constituídas de se apropriar desses meios para torná-los operativos.
Um outro antagonismo transversal ao das lutas de classe continua a ser o das relações homem-mulher. Em escala global, a condição feminina está longe de ter melhorado. A exploração do trabalho feminino, correlativamente à do trabalho das crianças, nada tem a invejar aos piores períodos do século XIX!
A juventude embora esmagada nas relações econômicas dominantes que lhe conferem um lugar cada vez mais precário, e mentalmente manipulada pela produção de subjetividade coletiva da mídia, nem por isso deixa de desenvolver suas próprias distâncias de singularização com relação à subjetividade normalizada.
Se não se trata mais – como nos períodos anteriores de luta de classe ou de chefes da “pátria do socialismo” – de fazer funcionar uma ideologia de maneira unívoca, é concebível em compensação que a nova referência ecosófica indique linhas de recomposição das práxis humanas nos mais variados domínios. Em todas as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto à vida cotidiana quanto à reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação artística, do esporte etc., trata-se de se debruçar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma re-singularização individual e/ou coletiva, ao invés de ir ao sentido de uma usinagem pela mídia, sinônimo de desolação e desespero.
Pelas perspectivas ético-políticas pode-se atravessar questões como racismo, falocentrismo, desastres legados por um urbanismo que se queria moderno, a criação artística liberada do sistema de mercado, a de uma pedagogia capaz de inventar seus mediadores sociais etc. tal problemática, no fim das contas, é a da produção de existência humana em novos contextos históricos.
A ecosofia social consistirá, portanto, em desenvolver práticas específicas que tendam a modificar e a reinventar maneiras de ser no seio do casal, da família, do contexto urbano, do trabalho, etc., a questão será literalmente reconstruir o conjunto das modalidades do ser-em-grupo.
A ecosofia pessoal traz a noção da reinvenção do sujeito consigo mesmo que busca uma maneira de operar que se aproxima mais daquela do artista do que a dos profissionais “psi”, sempre assombrados por um ideal caduco de cientificidade.
Se não houver uma rearticulação dos três registros fundamentais da ecologia, podemos infelizmente pressagiar a escalada de todos os perigos: os do racismo, do fanatismo religioso, dos cismas nacionalitários caindo em fechamento reacionários, os da exploração do trabalho das crianças, da opressão das mulheres, etc.
Trechos do livro: AS TRÊS ECOLOGIAS,
do psiquiatra francês Félix Guattari.
Um comentário:
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